domingo, 1 de setembro de 2013

REZADEIRAS, a cura através das palavras.


Em função do crescente e acelerado crescimento tecnológico, atualmente, estamos perdendo alguns ofícios realizados, principalmente, em cidades do interior. As rezadeiras ou benzedeiras, por exemplo, é um ofício quase que extinto, atualmente. Foi esse o motivo que me levou a optar por uma pauta direcionada a esse tema.
A narrativa a seguir, revela características de algumas rezadeiras. Apresenta, ainda, ritos e rezas realizados pelas benzedeiras. Durante a leitura você terá a sensação de fazer parte da narrativa, pois em função do enquadramento a mesma possibilita o leitor adentrar na história. Espero que curtam a leitura.


Vento Caído ou ventre virado
Vim de Roma. Passei em Romaria
Encontrei Nossa Senhora sentada numa pedra fria.
- O que é que está fazendo aí, Senhora?
- Estou levantando vendo caído
com água quente com água fria
com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Nossa Senhora, tira esse vento caído dessa criança
jogue para o mar, jogue para a  ilha.
Tire por toda a noite e tire por todo o dia
com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Vento caído, todas as dores do corpo dessa criança,
tudo que não presta jogue para as ondas do Mar Sagrado
onde não canta nem galo nem galinha
Não late cachorro, não chora menino pagão.
Carrega poente carrega nascente
o mar desse vivente.
Reza o Pai Nosso.

As rezadeiras ou benzedeiras são, em sua maioria, mulheres que realizam as benzeduras. Para executar esta prática, elas acionam conhecimentos populares, como súplicas e rezas, para restabelecer o equilíbrio físico e espiritual das pessoas que buscam ajuda. Para compor este ritual de cura, as rezadeiras utilizam vários elementos, dentre eles: ramos verdes, gestos em cruz feitos com a mão direita, torrões de barro, linha, cordão, pano, garrafas transparentes, toalhas brancas, além, é claro, do conjunto de rezas.
Estas podem ser executadas na presença do cliente ou à distância,
bastando apenas que alguém diga os seus nomes e onde moram e através do uso das palavras mágicas ocorrem os rituais de benzimentos.
Diante de tantas estórias contadas tanto pelas rezadeiras, quanto pelas pessoas rezadas, evidenciamos um fato comum entre os interioranos, que é a fé. Neste caso, no catolicismo popular que se dá através das rezadeiras que para muitos tem o poder da cura por meio das palavras. Além disso, podemos perceber que as rezadeiras suprem uma necessidade grave da população que é descaso dado à saúde pública, onde os pacientes têm que recorrer a outros meios para alcançar a cura das suas enfermidades.
Não diferente de muitos interioranos, os iraraenses, ou nascidos da luz ou do dia, como são conhecidos os nativos da cidade de Irará, se orgulham de manter viva uma tradição que é a crença nas rezadeiras. Hoje, com 171 anos de emancipação política e com 27.492 habitantes, a administração pública da cidade, disponibiliza para seus moradores um Hospital, um Centro Médico, três Unidades Básicas de Saúde e quatro Postos Médicos públicos e outros tantos particulares que realizam procedimentos de pequeno porte. Quando existe a necessidade de uma interferência de maior complexidade, os iraraenses, como outros interioranos do estado, são encaminhados para as cidades mais próximas - Feira de Santana ou Salvador.
É muito comum presenciarmos nos quintais das casas da cidade pessoas tendo folhas passadas em seu corpo para, segundo eles, livrá-los sobre tudo de alguma enfermidade do corpo ou da alma. Ensinadas, em sua grande maioria, pelos mais velhos, as rezas contra olhado, vento caído ou ventre virado, espinhela caída ou peito aberto, isipa, carne traída ou desmentidura, fogo selvagem ou mal de monte, engasgo, dor de cabeça de sol e sereno e tantas outras são símbolos de cura e livramento entre muitos iraraenses.
A senhora Maria Cerqueira de Jesus, conhecida como Maria de Alfredo, 62 anos, aposentada e lavradora é uma das rezadeiras mais requisitadas da cidade de Irará. Moradora de uma região da zona rural a curandeira – como auto intitula-se dona Maria, afirma que já salvou várias vidas.
- Óia, minha fia, eu comecei a rezar desde que me entendo por gente, com mais ou menos treze anos. Aprendi algumas rezas com minha avó e outras foi o dom que Deus me deu. Graças a Deus, meu Deus! Já salvei muitas vidas, minha fia. Rezo olhado, vento, espinhela, mal de monte, dor de cabeça. Rezo desmentidura, tontura. Rezo cobra. Rezo tudo, tudo que você imaginar. Se tiver derrame eu rezo. Se der hoje e a pessoa vim me buscar eu salvo. Eu não, Deus salva. Eu peço e Deus salva.
- E como a senhora descobriu que tinha esse dom? Não se assusta com a quantidade de pessoas que procuram a senhora para que sejam rezadas?
- Pra falar a verdade eu não sei como descobri esse dom e eu agradeço a Deus todos os dias quando levanto e quando me deito, por ele ter me abençoado com essa graça.
E enquanto conversávamos, fomos interrompidas por um chamado insistente:
“Ô de casa?! Ô de casa?! Dona Maria! Ô, dona Maria”.
- Pode entrar Quiquinho, o cachorro está lá no fundo.
Essa foi à resposta dada por dona Maria a uma pessoa que ela não tinha visto, mas que tivera reconhecido pela voz.
- O que foi meu fio?!
- Nada não. Mainha foi que mandou eu vim aqui e trazer meu tio pra senhora rezar, por que ele veio de Salvador e com esse negócio todo vermelho e minando no pé. Ele disse que é alergia, mas foi no médico já tem mais de uma semana, tomando remédio e é mesmo que nada.
- Chegue à frente. E qual é teu nome, mesmo? Eu não me lembro de tu... Você é o caçula ou é o do meio de Chica?
- Eu sou o José Cláudio, dona Maria - o caçula.
- Óia, tá é diferente. Gordo, bonito! Casou? Já tem fio?
Sorrindo, meio envergonhado o rapaz aparentando uma faixa etária de aproximadamente trinta anos respondeu balançando a cabeça que não as perguntas. Sem nenhuma cerimônia e se colocando como uma espécie de cupido ela foi logo me apresentando dizendo de quem eu era filha e que eu estava ali fazendo um trabalho da escola (faculdade) e que eu era jornalista. Um pouco constrangida com a situação, sorri e continuei sentada ouvindo a conversa.
- Venha cá, na luz pra eu como essa ferida. feia! Isso só pode ser mal de praia. Você vai viajar que dia?
- Eu vou hoje à tarde, dona Maria.
- Então só vai dá pra rezar uma vez. Seu caso era bom rezar os três dias, mas como você não pode ficar vamos rezar somente um dia e, se Deus quiser, vai fechar.
- Peraê que vou aqui na cozinha pegar um pouco de óleo de comida pra eu rezar você. Ô, Quiquinho pegue aí pra mim, meu fio, três raminhos de mato verde.
Após retornar da cozinha com um pouco de óleo em uma vasilha de margarina e os ramos de capim em suas mãos, dona Maria nos convida a irmos para o quintal e virada em direção ao poente começou a reza em voz alta:
Vento selvagem, mal de monte ou mal de praia
Vim de Roma. Passei em Romaria
Encontrei Nossa Senhora sentada numa pedra fria.
- O que é que está fazendo aí, Senhora?
- Rezando vermelhão, inchação, mal de monte e mal de praia.
Quando a maré vazar tu vai. Quando a maré vazar tu vai.
Com os poderes de Deus e da Virgem Maria!
Carrega poente carrega nascente
o mar desse vivente.
Reza o Pai Nosso.

- Pronto! Com fé em Deus você vai ficar bom. Ainda ontem eu rezei o neto de Rosa, eu mandei ele voltar amanhã, mas nem precisava, porque a ferida já tava fechada. A fé é que cura, não, minha fia?!
- Sim, dona Maria, respondi.
Neste mesmo instante o rapaz colocou a mão no bolso e retirou da sua carteira uma nota de R$20 a entregou agradecendo-lhe e se despediu.
Retomamos então a conversa e, antes mesmo que eu a perguntasse - caminhando de volta a casa, disse dona Maria:
- Eu não cobro pra rezar não, viu? A gente só cobra R$ 20 para espinhela, porque senão não serve nem pra mim nem pra pessoa, porque quebra a força.
Eu rezo aí quem quer e pode me dá um agrado. Um vem e me dá uma galinha.
Outro me dá um pacote de feijão. Outro me dá uma fronha. Mas pra eu dizer:
“É tanto, não!” Porque Deus não dá o dom pra gente cobrar por ele. Deus deixou a gente pra fazer a caridade. Ele me ensinou a fazer o bem, sem olhar a quem. Esse dinheirinho que ganhei agora, amanhã mesmo vou na rua e vou comprar uns panos de prato que precisando e um pacote de vela pra acender pra Deus dá a cura dele.
- A Sra. teria uma média de quantas pessoas já rezou?
- Ave Maria! Desde que rezo, já rezei mais de mil pessoas. É gente desse mundo de meu Deus que me procura para eu rezar. Dor de cabeça mesmo, eu rezo direto.
Dor de Cabeça de Sol e/ou Sereno
Encontrei Nossa Senhora sentada numa pedra fria.
- O que é que está fazendo aí, Senhora?
- Rezando dor de cabeça com água quente com água fria
com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Dor de cabeça, estuporado, custipado
Se for sol, se for sereno, se for resta, se for lua
vai para o mar e vai pra ilha
com os poderes de Deus e da Virgem Maria
Encontrei Nossa Senhora sentado em Oliveira
- O que é que está fazendo aí, Senhora?
- Rezando essa dor de cabeça
de resta, sol, sereno, lua. (3x)
Joga para o mar e pra ilha
com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Estuporado, custipado. (3x)
Reza o Pai Nosso.

- Você pode estar com uma dor de cabeça jogando pedra, minha fia...  Fica boa na hora! Essa é com a toalha e a água. A gente coloca a água quente. Você diz
assim: “Maria, amanhã eu vou aí pra você rezar a minha cabeça”. Aí eu me previno cá. Pego uma garrafa branca encho de água e coloco no sol e deixo lá e mando você vim umas 10 horas. Quando você chegar, aquela água ali já quente. Rezo até três vezes se for uma dor de cabeça muito forte, mas se for uma dor normal só rezo uma vez e aí a pessoa não precisa vim mais.
- Agora a reza de Espinhela eu não posso falar, porque senão quebro a força da minha reza. Espinhela eu não posso falar, porque ela é tão forte que eu não posso ensinar ninguém. Eu costumo rezar espinhela de tarde e depois da reza não faço mais nada, porque não guento, a carne do corpo fica toda tremendo, parecendo que tomei porrada. Quando eu ver que eu não posso mais rezar e tiver uma pessoa que se interesse e quiser aprender eu ensino, mas enquanto eu tiver rezando eu não posso ensinar ninguém. Minha avó, quando resolveu me ensinar essa reza foi quase na hora da morte dela. Ela disse: “Vou lhe ensinar a reza de levantar espinhela, pra você salvar as vidas que eu já salvei.” Graças a Deus, meu Deus eu tenho salvado mesmo, explicou dona Maria.
Detentora de uma sabedoria inata, dona Maria se emocionava sempre que contava uma das suas estórias referente às curas que ela atribuía às rezas realizadas e atendidas por Deus por intermédio da Virgem Maria, Senhor Bom Jesus da Lapa, Senhor do Bonfim, Santo Antônio, São Cosme e São Damião e
São José – alguns santos que ela diz recorrer para intercederem por ela junto a Jesus Cristo.
Embora se acredite que as rezadeiras sejam católicas e usem elementos simbólicos associados ao catolicismo popular, é comum encontramos algumas rezadeiras que se denominavam evangélicas. Além disso, é extremamente recorrente acharmos rezadeiras de matrizes afrodescendestes. Sendo assim, somos surpreendidos, a todo o momento, por situações novas. Ou seja, composições originais misturadas a elementos aparentemente díspares.
- Me lembro como se fosse hoje, minha fia. Morava aqui perto, hoje ela mora na rua, minha cumadre Tereza rezava de tudo também, mas aí uma das fia dela que era crente (evangélica) adoeceu, quase morre. Minha cumadre desesperada com a situação da fia fez uma promessa e disse que se a menina sobrevivesse ela virava crente (evangélica) também. Eu disse a ela que o Deus era o mesmo e era besteira ela fazer esse tipo de promessa – imagine uma pessoa nascida e criada dentro da igreja católica ter que mudar seus hábitos, da noite pro dia! Mas ela tava decidida. Graças a Deus a menina sobreviveu e ela cumpriu a promessa, tem mais ou menos uns nove há dez anos que ela virou crente (evangélica) e foi morar na Cidade Nova (bairro localizado na zona urbana da cidade) com a fia.
- Entendo perfeitamente a situação dela, dona Maria. Mas ela permanece rezando, depois desse fato? – Quero saber.
- Reza sim, menina. A fé vem antes de tudo e a pessoa não pode abrir mão de salvar o seu semelhante por causa de religião não. Religião é coisa do homem. Deus é que sabe de todas as coisas. Não é não?
            Sempre muito receptiva e disposta a colaborar, dona Maria levantou-se e uns três minutos depois já veio do quarto com o telefone na mão pedindo para que eu perguntasse o que quisesse para dona Tereza. Peguei o telefone e do outro lado da linha, ouvi a voz de uma pessoa que parecia ter sofrido muito na vida.
            E logo após eu dizer alô antes mesmo de me apresentar, e também muito prestativa, dona Tereza foi logo se apresentando. “Meu nome é Tereza de Jesus dos Santos, sou aposentada e tenho 65 anos de idade. Sou viúva e me interessei pelas rezas, porque meus meninos (filhos) sempre adoeciam e eu não gostava de incomodar”, relatou dona Tereza.
- Bom dia, dona Tereza. O meu nome é Damiana e estou realizando um trabalho a respeito das rezadeiras de Irará. Tudo bem com a sra.? A dona Maria me contou um pouco da sua história.  Eu fiquei encantada com a sua perseverança na cura da sua filha. Parabéns por sua história de vida. Um exemplo a ser seguido.
- Brigada, minha fia. Cumadre Maria me falou. Você quer saber se eu ainda rezo mesmo sendo crente (evangélica), ?
- Sim. Gostaria de saber, caso queira falar a respeito, como a Sra. é vista pelas outras pessoas em sua igreja uma vez que os evangélicos não acreditem nesses tipos de ritos?
- Óia, minha fia, eu não me importo muito com que o povo fala não. Deus sabe de todas as coisas e só Ele sabe o que passa em meu coração. Muitos lá na igreja me chamam de falsa crente, mas não me importo. Alguns irmãos esquecem que Deus quer é o nosso coração, pregam uma coisa e vive outra. Eu não aqui pra julgar, sabe? Quem sabe que eu rezo e me procura, eu rezo. Sou nascida e batizada na igreja católica, não vejo mal algum nisso. Mal eu vejo em esquecer da vida e tomar parte da vida dos outros. Isso é que é pecado, mas fazer o bem não é pecado. Até Deus, quando se fez homem curava e se Ele deixou esse dom pra mim, não tem porque eu não fazer.
A rezadeira falou ainda da pouca importância dada para Nossa Senhora pelos evangélicos, que falam de Jesus como se ele tivesse sido encontrado, nascido sem mãe. Percebe-se aqui que as experiências vividas, por dona Tereza, no catolicismo popular, foram tão intensas que a rezadeira não conseguiu se desvencilhar deles, motivo pelo qual ela continua rezando.
- Muito obrigada, dona Tereza. Suas palavras foram muito importantes para o desenvolvimento da minha pesquisa.
- Deus lhe abençoe, menina. Fico feliz em ter ajudado. E caso precise, pode ficar à vontade para aparecer aqui em casa - moro próximo ao Bar de Pelé.
E após cinco minutos de conversa concluo a ligação e ao olhar para o lado dona Maria já me aguardava com um copo de suco de maracujá e alguns biscoitos cream cracker.
- Não precisava se incomodar, dona Maria.
- Que nada, minha fia. Não foi trabalho nenhum.
- Então é isso, a conversa esta boa mais tenho que ir. Muito obrigada por sua colaboração.
- Sempre que precisar é só mandar sua avó me avisar. Deus que lhe acompanhe.      
- Amém! Fique com a sra. , também.
Vento (Quarana – Nove ramos e alho)
Pedro e Paulo foram a Roma
Foram fazer a Romaria
Encontrou-se com Nosso Senhor Jesus Cristo que perguntou:
- Filho, o que é que esta fazendo aí?
- Estou rezando vento, olhado, quebrante, admirante, rebentante
do  teu corpo da tua matéria
Jogue para o mar, jogue pra ilha
onde não canta nem galo nem galinha
Não late cachorro não chora menino pagão.
Com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Tira do teu corpo dor de pontada, dor de agulhada, dor de reumatizante.
Jogue para o mar, jogue pra ilha
com os poderes de Deus e da Virgem Maria.
Carrega poente carrega nascente
o mar desse vivente.(3x)
Reza o Pai Nosso e oferece ao Nosso Senhor
crucificado numa cruz.

Algumas rezadeiras narram que o seu saber foi assimilado a partir da observação de familiares ou vizinhos, mas é através da experiência vivenciada e da história de vida de cada uma delas que são organizadas e reorganizadas as práticas das rezas. É comum, nesse sentido, ouvirmos que não é qualquer pessoa que pode vir a tornar-se rezadeira. Ou seja, existe um elemento fundamental que acreditam ser o dom da cura – não basta, portanto, aprender as rezas, é preciso ter certas habilidades e qualidades. Ter uma conduta moral.
O que implica ser uma pessoa de bons princípios, acreditar em Deus, não difamar os outros, e acima de tudo não cobrar pelas curas que realizam. Contudo, algumas pessoas utilizam-se de seus dons para abusar da boa fé e da necessidade alheia.
Godofredo Martins da Silva, conhecido como Gôdo. É um agricultor, 63 anos e morador da zona rural da cidade, que apresenta características de um rezador interesseiro. De início ele não queria falar a respeito da sua vida enquanto rezador. Porém, após muita conversa e ao ser informado de que teria sua história publicada na internet, o rezador se interessou e decidiu realizar a entrevista.
E num domingo chuvoso, bem cedinho, enquanto sonhava ouvi algumas vezes o seguinte chamado: “Nani!! Nani, minha filha, levanta! Gôdo esta lhe esperando. Ande logo antes que ele se aborreça e vá embora.” Acreditando que a fala fazia parte do sonho virei para o outro lado e continuei dormindo. Foi quando minutos depois senti que alguém me sacudia. Era mainha me acordando para fazer a entrevista com Gôdo.
Foi quando abri os olhos e fui fazer a cama já aborrecida por ter acordado tão cedo em pleno domingo. Neste momento, acordei também Amanda, minha sobrinha, que vai me acompanhar durante o processo. E após tomar um banho e um pouco de café, muito rapidamente, iniciei a serie de entrevistas que ocorreriam naquele dia.
- Então, seu Gôdo, desde quando começou a rezar e com quem aprendeu?
- Comecei a rezar com meus 20 anos, aprendi com os mais velhos. Eu vendo e aprendi... Rezo olhado, vento, vento caído. Rezo o mal da praia, Rezo peito aberto, desmentidura.
- Desmentidura? - Interrogo
- Sim, desmentidura. Você cai, torce o pé, eu rezo e você fica boa. Ô Amanda, trás aí uma cachaça pra mim.
            E após beber aproximadamente três dedos de pinga e enrolando o seu cigarro de pacaia seu Gôdo retoma a conversa.
- Sim, como eu ia dizendo, se você cai e desmente o pé, quebra ou torce um dedo eu rezo e você fica boa sem precisar ir no médico.
- Aí é verdade mesmo, minha tia. Eu cai na quadra da escola e meu pé tava inchado, minha avó me mandou ir em Gôdo pra ele rezar e no outro dia eu já estava boa. Nesse momento entra na conversa Amanda Oliveira, estudante, 16 anos e cliente assídua de quase todas rezadeiras da cidade.
- Conta ai, Gôdo, como é a reza. Ele reza com sete torrões de barro. Eu gostei. Já tava até preocupada em ter que ir em Dr. Deraldo e gastar dinheiro com remédio, mas graças a Deus com a reza eu fiquei boa, afirma Amanda.
- Aí, ó! Ficou boa e você me pagou? Você me pagou? Retrucou o rezador.
A adolescente cai no riso e pergunta para o rezador como é que ela iria pagar se ela estava sem dinheiro. Mas que ela tinha dado para ele uma cerveja e uma dose de cachaça, acreditando que serviria como o pagamento.
- Conta Gôdo, a reza. Conta! Insistia a adolescente.
            Já com o seu cigarro acesso o rezador se inclina e pede a adolescente para se aproximar dele para que ele explique como ocorre a reza.
- Faz de conta Amanda torceu o pé. Primeiro eu pego ou faço sete torrão de barro e começo a rezar assim:
Carne traída ou Desmentidura
Osso quebrado
Carne machucada
Com as mãos de Jesus
Vai ficar curada.
O que é que eu estou rezando? (7x)
A pessoa que esta sendo rezada responde o que sente
Com os poderes de Deus e da Virgem Maria.

- Aí eu pergunto: “O que é que eu estou rezando?” E a pessoa tem que responder o que sente. Por exemplo: carne quebrada ou osso torcido. E vou rezando e passando o torrão. Um de cada vez até completar sete. Oxe, é certo no outro dia a pessoa já tá curada, diz o rezador.
- Seu Gôdo, eu percebi durante a sua conversa com Amanda que diferentemente de outras pessoas o sr. cobra para rezar. Tem um valor fixo? Pergunto.
- Apois! Cada pessoa tem um jeito de rezar, mas eu não cobro todo mundo não, eu só cobro estranho. E eu costumo cobrar entre R$ 10 e R$ 20. Amanda é conhecida, mas todo dia essa menina quer ser rezada – eu acho que ela quer aprender as rezas. Mas eu já falei com ela que só ensino quando eu tiver próximo de morrer.
- Agora ispia que conversa besta, essa de Gôdo. Por acaso tu sabe quando vai morrer? Pra pessoa morrer basta está vivo. Eu nunca vi se cobrar por uma coisa que Deus deu. É por isso que eu não pago mesmo, afirma Amanda.
- Sim, Amanda! Mas eu sei que eu não vou morrer por agora e quando eu completar 65 anos eu começo a ensinar as rezas. Eu vou quebrar a força das minhas rezas, é? Pegue ali outra cachaça pra mim, exige seu Gôdo.
- Óia, só presta pra beber e jogar dominó. Eu vou trazer logo o litro pra você ficar bêbado. Aí eu quero ver quem ti leva pra casa - Diz Amanda, sempre rindo das suas discussões com o rezador.
E muito rapidamente, enquanto voltava do bar que funciona no mesmo endereço onde reside, volta Amanda com o litro de cachaça na mão e falando ao celular, grita: “Mainha! Ô mainha! Corre, vai pegar as folhas de vassourinha que é Sandra no telefone esperando a sra. para rezar o filho dela.
E neste mesmo instante surge, saindo da casa e encontrando-se comigo, Amanda e seu Gôdo na varanda, com alguns galhos em suas mãos dona Maria Lúcia da Silva Oliveira, 61 anos, professora, cozinheira, rezadeira e acima de tudo mãe. Trata-se de uma pessoa muito especial para mim, pois foi essa mulher que me ensinou alguns princípios que trago comigo – ela é a minha mãe adotiva, ou, simplesmente, mainha.
Ela pega o telefone com Amanda e eu solicito a seu Gôdo que aguarde para que eu possa acompanhar o ritual. Peço a professora Lúcia que coloque o celular no viva voz para eu acompanhar a conversa.
- Bom dia, minha filha. E aí, o menino já está dormindo a noite toda? – Diz a professora.
- Bom dia, professora Lúcia. Graças a deus e a sua reza, ela já esta bem. Eu não sei o que seria de mim sem a senhora, depois que esse menino nasceu só ando lhe incomodando, ?
- Que incômodo? Não se preocupe com isso não. Saia de casa e fique em direção ao poente, pediu dona Lúcia.
- Já estou no quintal, responde Sandra.
E virada para o leste, em direção a cidade de Feira de Santana (cidade onde se encontra a pessoa que será rezada) em relação a Irará, a professora inicia a reza.
Olhado (Vassourinha três galhos)
Matheus,
Com dois te botaram, com três eu te tiro
com os poderes de Deus e Virgem Maria.
Se ti botaram de gordo ou de magro, de feio ou de bonito.
Se foi na escola, no andar, na preguiça.
Se foi de olho grosso, mufina, inveja, usura, feitiço.
Será retirado com as três pessoas da Santíssima Trindade (3x)
Reza um Pai Nosso e uma Ave Maria.
Em Roma fui nascido. Em Roma fui criado.
Este mal que está em teu corpo será retirado
com os três pessoas da Santíssima Trindade (3x)
Salvo sou! Salvo serei!
O sangue de Jesus Cristo te cobrirá. (3x)
Jesus, José e Maria
estejam em tua companhia. (3x)
Este olhado, esta usura, esta inveja, este olho grosso
serão retirados e levados para as ondas do Mar Sagrado
onde não canta nem galo, nem galinha. (3X)
Reza um Pai Nosso e uma Ave Maria

- Pronto. Agora você coloca ele pra descansar um pouco e quando ele acordar já vai esta bom. Precisando já sabe, é só ligar.
- Desliga não minha avó, deixa minha tia falar com Sandra - Diz Amanda
- Bom dia, Sandra. Tudo bem? De quem você herdou essa crença nas rezadeiras.
- Então, Dami. Minha avó era rezadeira e minha mãe sempre costumava nos rezar quando estávamos com muita preguiça ou com o corpo mole. Ela dizia que era olhado. Quando minha avó faleceu comecei a ser rezada pela professora Lúcia e desde que sai de Irará e ganhei bebê eu ligo pra que ela nos reze. E como quem cura é a fé eu acredito que o simples fato dela estar recitando as palavras e passando as folhas no vento tem o poder por meio da fé e intercessão dos santos de alcançarmos a cura daquele malefício.
- Entendo. E quantos anos tem o seu filho e com que frequência você costuma rezá-lo? - Pergunto
- Matheus tem 3 anos e eu rezo sempre que ele está um pouco mole, fica sem vontade de brincar, não come direito e passa a acordar várias vezes a noite. Aí eu já sei que é olhado e ligo pra professora Lúcia, responde Sandra.
- Muito obrigada, Sandra – Agradeço.
-Disponha. Espero ter lhe ajudado.
E após encerar o contato, a professora Lúcia – como é conhecida na cidade foi logo dizendo que ela aprendeu a rezar com a sua avó – a dona Epifania Cerqueira, que era escrava e com sua mãe - a Sra. Albertina Cerqueira da Silva, 84 anos, aposentada e um das poucas rezadeiras de engasgo da cidade.
E após encerar o contato, a professora Lúcia – como é conhecida na cidade foi logo dizendo que ela aprendeu a rezar com a sua avó – a dona Epifania Cerqueira, que era escrava e com sua mãe - a Sra. Albertina Cerqueira da Silva, 84 anos, aposentada e um das poucas rezadeiras de engasgo da cidade.
Engasgo
Casa de farinha
Esteira, arroto
Homem bom, mulher ruim.
- Engasgo, tu sobe ou desce?
Com os poderes de Deus e da Virgem Maria
São Braz em sua guia.

- Eu sempre rezei vocês de olhado e vento caído. E o povo dessa região toda aqui eu rezo e rezo, ainda, as pessoas que vão morar em outras cidades por telefone. Já rezei gente de que foi pra toda parte do mundo, disse a professora.
- Ah, eu pensei que tu não fosse falar que tua mãe também é rezadeira. Semana passada, mesmo, de tanto ela me pedi eu ensinei a reza de espinhela pra ela. Depois você anota e leva pra seu professor - Pontuou o Sr. Gôdo, que a esta altura já estava na terceira dose de pinga e sempre acompanhado do seu cigarro de pacaiá.
Espinhela caída ou peito aberto (Cordão)
Cristo nasceu, Cristo ressuscitou
Com os poderes de Deus e da Virgem Maria (3x)
A espinhela de (nome da pessoa) se fechou
com os poderes de Deus e da Virgem Maria

- Muito obrigada, Seu Gôdo. Sua colaboração foi muito importante para o meu trabalho. Deus lhe pague.
- Que nada. Quando precisar você avisa a sua mãe e ela me fala – Disse o rezador.
- Óia pra Gôdo, gente! Diz ele que vai ficar famoso. Sim, e eu não vou falar não, minha tia? - Retrucou a adolescente enquanto ria do rezador.
- Tu tá demais Amanda, não sei quem você puxando – diz Gôdo
- Sim, pague logo as três doses de cachaça que você tomou - cobra Amanda.
- Eu não, deixa na conta de sua tia. Deixa pago aí também, Damiana, umas duas cervejas e um guaraná (refrigerante) pra eu tomar de tarde – pede o rezador.
- Eu sabia que Gôdo não ia fazer nada de graça, tudo ele tem que ter vantagem – brinca Amanda.
- Pode deixar que eu pago. E você, Amanda, me conte um pouco da sua experiência enquanto rezada.
- Eu costumo me rezar pra tudo. Daqui a pouco mesmo, vou pedi minha avó pra mim rezar de dor de cabeça – desde sexta-feira não estou conseguindo dormir direito com essa dor. Às vezes, minha avó me reclama, diz que parece que eu acho reza brincadeira, mas nem ligo. Quando ela não me reza, eu vou a outra rezadeira e ainda digo que foi ela que mandou – afirma Amanda.
- E sempre ocorrem resultados positivos?
- Oxe, até hoje tem sido tiro e queda – diz Amanda.
- Ok, então Amanda. Muito obrigada.
- Por nada, minha tia. Ah, eu já estou achando que vou ser jornalista. Ficamos sabendo de um monte de coisa e todo mundo quer falar. Hum, acho que é essa profissão que quero pra mim.

A seguir, alguns sintomas e como curar algumas das doenças citadas acima.
 Vento caído ou ventre virado - É uma doença específica de criança, e que está associada ao desarranjo intestinal e à desidratação. A criança adquire esta doença através de um susto. Neste momento, o estômago da criança vira, e só fica curado, depois de ser rezada três vezes. Algumas formas de detectar este mal: vômito seguido de diarréia de cor esverdeada, o desaparecimento do risquinho, localizado no pé da barriga da criança, e um pé maior que o outro.
Isipa, fogo selvagem e mal de monte - Também é conhecida por erisipela isipela ou mal de praia. É um tipo de inflamação cutânea que surge pelo corpo. Geralmente, a parte afetada apresenta cor avermelhada e o doente sente febre e dores insuportáveis.
Dor de cabeça de sol e/ou sereno – É caracterizado por apresentar uma dor de cabeça insistente, diferente de qualquer outra, e que não passa nunca, nem com remédio. Ela continua por dias, sem variar ao longo do dia. Costuma aparecer depois de pegar sol demais, principalmente o mormaço - mais luz que calor.
Vento: Costuma-se dizer que uma pessoa estar com vento quando esta ao acordar reclama de fortes dores no pescoço, tem ânsia de vômito e sente tontura.
 Carne traída ou desmentidura - De acordo as rezadeiras, o termo traída, esta associado a algo que foi rasgado bruscamente. É o caso da luxação, deslocação de um osso, torção em um membro ou um machucado. A reza é realizada com o uso de sete torrões de barro.
Olhado - Muitas pessoas ao redor do mundo acreditam que através dos nossos pensamentos ou através de um olhar invejoso, uma pessoa é capaz de causar danos aos outros, sob a forma de doenças, ferimentos ou até mesmo a morte. Sintomas: dores no corpo, preguiça e cansaço. Para se livrar do mal olhado, além de tomarem banho de sal grosso, muitas pessoas costumam recorrer as rezadeiras para serem rezadas através das folhas e com proteção do Arcanjo Miguel se afastar do mal.
Engasgo - Segundo a tradição, a reza contra engasgo deve ser rezada quando a pessoa engasga-se com espinha de peixe e esta fica atravessada na garganta. A reza é utilizada para que a espinha vire e possa descer.
Espinhela caída ou peito aberto - Segundo a tradição popular, a espinhela é um ossinho mole que vem do coração. Está localizado no meio do peito, pouco acima da boca do estômago. A espinhela caída é proveniente de peso que a pessoa pega. Sintomas: dor nas costas, no estômago, nas pernas e cansaço. A pessoa perde as forças e não pode se abaixar, porque sente dores. Dá mais em adultos. Para se saber se a espinhela está caída, tira-se a medida - com um fio de algodão ou uma toalha, a rezadeira mede da ponta do dedinho à ponta do cotovelo. Depois de um ombro ao outro. Se coincidirem as medidas, a espinhela está normal. Se não, está caída. Cura na rezadeira, que trata primeiro o vento caído tomando a medida e rezando.


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